A minha filha roubou-me as certezas. Mas não tenho a certeza.
Se ficar esquizofrénica, não se admirem.Há dias em que o meu cérebro maternal está doido. O lado esquerdo conversa com o lado direito como se eu não tivesse coração.
- A bebé está a chorar. Vou fechar a porta do quarto e deixá-la chorar longe dos meus ouvidos.
- Um, dois, três… quarto! Olá, meu amor… Anda cá à mãe, estás a chorar porquê?
- Não te posso dar colo a toda a hora se não ficas mimada…
- Vá, vem lá ao colinho, porque carinho nunca é demais.
- Se calhar tem fome…
- Não, pode muito bem comer só quando pedir.
- Perdeste a chucha?
- Era melhor não dar chucha para não se habituar. Andamos a viciar os miúdos desde que nascem.
- Tu estás é rabugenta, toma lá a chucha a ver se te calas. Mais tarde tiro-te o vício.
- Fixe, calou-se. Era mesmo chucha que queria.
(Que dia da semana é hoje?)
- Tenho de ter cuidado, não posso dar chucha, mama e biberão se não ela fica confusa - é o que dizem os livros.
- Valha-me Nossa Senhora… Tarde demais.
- Se calhar tem frio. Vou pôr-lhe umas meias.
- Talvez chore é de calor, tiro-lhe as meias e vou-lhe dar água.
- A pediatra disse que não lhe posso dar água.
- E as avós perguntaram-me ‘que mal é que faz?’
- A miúda transpira… Está decidido, dou-lhe água e não digo nada à pediatra nem às avós.
- Adormeceu. Era mesmo água que queria.
- Epá, já passaram três horas! Será que devo acordá-la para comer?
- Nunca se deve acordar um bebé - também li isso algures.
- Nem deixar dormir na minha cama, em caso algum!
- Ontem o sono era tanto que a deitei comigo, farta de esticar o braço para lhe pôr a chucha. A minha vontade era colar-lha.
(Hoje é quarta ou quinta-feira?)
- Ahh, estás de olho aberto?
- Rápido, o biberão!
- Ai, estou tão aflita para ir fazer xixi e o biberão vai demorar…
- Depois faço xixi… Boa, está a comer. Era mesmo fome que tinha.
- Que sôfrega! Devia interromper o biberão para ela respirar. Mas se o tiro… Ela fica danada.
- Não tiro, ela que pare quando lhe faltar o ar.
- Bem, a miúda já comeu, mas não arrotou. Vou esperar antes de a deitar.
- Já passaram dez minutos, se calhar arrotou e não dei por isso. Deito-a.
- Mas antes mudo-lhe a fralda, deve ter cocó.
- Não, não tem cocó.
- Tem de fazer cocó todos os dias. A propósito, o último cocó foi verde.
- Ou seria amarelo? Isso, amarelo esverdeado.
(Mas onde é que ficou a chucha?)
- Chiu! Adormeceu no colo…
- Não te mexas.
- Hum… Deixo-a dormir em cima de mim ou ponho-a no berço?
- Berço.
- Aiii… Como é que tiro o braço debaixo dela sem a acordar?
- Opsss, acordou… Dá-lhe a chucha!
- A bebé está a chorar. Vou fechar a porta do quarto e deixá-la chorar longe dos meus ouvidos.
- Um, dois, três… Quarto! Olá, meu amor… Anda cá à mãe, estás a chorar porquê?
A minha filha roubou-me as certezas. Mas não tenho a certeza.
Sofia Anjos, 38 anos, directora de contas numa agência de comunicação, foi mãe pela primeira vez em Maio.
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